A teoria aristotélica do movimento
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A teoria aristotélica do movimento

Diagrama do Universo, segundo Aristóteles e Ptolomeu, da edição de 1524 da Cosmographia, de Peter Apian.
O modelo de Universo de Ptolomeu era essencialmente o aristotélico, ou seja, um cosmo finito, constituído de esferas concêntricas, com a Terra imóvel no centro. A atmosfera chegaria até a altura da Lua, definindo o espaço do mundo “sublunar”, constituído por quatro elementos, Terra, Água, Fogo e Ar. A partir da esfera da Lua, no mundo “supralunar”, constituído de um “quinto elemento”, o Éter, haveria uma série de esferas transparentes (que foram chamadas orbes) girando em torno da Terra e levando consigo os planetas Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno (os planetas conhecidos na época), além do Sol. A última das esferas conteria as chamadas “estrelas fixas”, o primum mobile, “primeiro motor”. Para além deste, não haveria movimento, nem tempo, nem lugar (espaço), daí a noção de um cosmo finito ou “mundo fechado”.
Para compreender a natureza do trabalho de Galileu e para apreciar o seu significado deveremos examinar primeiramente o esquema de pensamento lógico anterior a Galileu, e que foi por este substituído. Na ciência física medieval, tal como Galileu a aprendeu na Universidade de Pisa, supunha-se existir uma distinção perfeitamente vincada entre os objetos terrestres e os objetos celestes. Acreditava-se que toda a matéria terrestre, aquela que estava ao nosso alcance físico, era composta por uma mistura de quatro ”elementos” – Terra, Água, Ar e Fogo. Mas não se pensava que estes elementos fossem idênticos aos materiais naturais com o mesmo nome. Pensava-se, por exemplo, que a água vulgar fosse uma mistura dos quatro elementos, embora o elemento predominante fosse a Água. Cada um dos quatro elementos era suposto ter um lugar natural na região terrestre. O lugar mais alto seria preenchido pelo Fogo; por baixo do Fogo estaria o Ar, depois a Água e, finalmente, na posição mais baixa, a Terra. Supunha-se também que cada um deles deveria procurar o seu próprio lugar. Assim o Fogo, se fosse deslocado para baixo da sua posição natural, tenderia a subir através do Ar. Da mesma maneira o Ar tenderia a subir através da Água, enquanto a Terra deveria cair através quer do Ar quer da Água. O movimento de qualquer corpo real dependeria da correspondente mistura destes quatro elementos e da sua posição em relação aos respetivos lugares naturais. Quando a água fervia, por exemplo, o elemento Água juntava-se ao elemento Fogo, cujo lugar natural mais elevado levava a mistura a subir, como vapor. Uma pedra, pelo contrário, sendo principalmente constituída pelo elemento Terra, caía quando solta, passando através do Fogo, do Ar e da Água, até ficar em repouso na terra, seu lugar natural.
Os pensadores medievais acreditavam também que as estrelas, os planetas e os outros corpos celestes diferiam na composição e no comportamento dos objetos situados na superfície terrestre ou na sua proximidade imediata. Supunham eles que os corpos celestes não continham nenhum dos quatro elementos ordinários, sendo unicamente formados por um quinto elemento, a quinta-essência. O movimento natural de objetos compostos deste elemento não era nem a queda nem a ascensão, mas antes uma interminável revolução circular em torno do centro do universo. Este centro era suposto estar colocado no centro da Terra. Os corpos celestes, embora em movimento, estariam sempre nos seus lugares naturais. Consequentemente, eles seriam radicalmente distintos dos objetos terrestres, que se deslocavam animados de movimento natural apenas quando afastados da sua posição natural e em direção a esta.
Esta teoria, largamente defendida na época de Galileu, tivera a sua origem quase 2000 anos antes, no século IV A. C. Encontramo-la claramente exposta nos trabalhos do filósofo grego Aristóteles. Esta ciência física, construída sobre a ordem, a classe, o lugar e a finalidade, encontra-se em razoável acordo com muitos factos observados quotidianamente. E parecia particularmente plausível em sociedades como aquelas em que Aristóteles e Galileu viveram, onde a posição hierárquica e a ordem eram dominantes na experiência humana. Além disso, estas conceções da matéria e do movimento eram apenas uma parte de um esquema universal ou “cosmologia”. Na sua cosmologia, Aristóteles procurou relacionar ideias atualmente agrupadas separadamente, sob os nomes de ciência, poesia, política, ética e teologia.
Não se sabe muito sobre a aparência física de Aristóteles ou sobre a sua vida. Pensa-se que tenha nascido em 384 A. C., na província grega da Macedónia. Seu pai era o médico do Rei da Macedónia, de modo que a primeira infância de Aristóteles foi passada na corte. Completou a sua educação em Atenas, regressando mais tarde à Macedónia para se tornar o tutor de Alexandre, o Grande. Em 335 A. C. Aristóteles regressou a Atenas e fundou o Liceu, simultaneamente escola e centro de investigação.
Depois do declínio da antiga civilização grega, os trabalhos de Aristóteles permaneceram virtualmente ignorados durante 1500 anos na Europa Ocidental. Foram redescobertos no século XIII D. C. e mais tarde incorporados nos trabalhos dos mestres e teólogos cristãos. Aristóteles passou então a exercer uma influência dominante, para o fim da Idade Média, a ponto de ser referido simplesmente como “O Filósofo”.

Fresco intitulado “Escola de Atenas”, de Rafael (princípios do século XVI). Reflete um aspeto primordial da Renascença, o recrudescer do interesse pela cultura clássica Grega. As figuras centrais são Platão (à esquerda, apontando para o céu) e Aristóteles (apontando para o solo).
Fonte do vídeo: Musei Vaticani, Scuola di Atene – Raffaello Sanzio. 3D Reconstruction
Os trabalhos de Aristóteles constituem quase uma enciclopédia do pensamento clássico grego. Alguns deles parecem constituir um simples resumo do trabalho de outros, mas a maior parte deve ter sido criada pelo próprio Aristóteles. É difícil de acreditar, hoje em dia, que um único homem pudesse estar tão bem informado em assuntos tão diversos como lógica, filosofia, teologia, física, astronomia, biologia, psicologia, política e literatura. Há grandes especialistas que se mostram reticentes em acreditar que possa ser tudo obra de um único homem.
Infelizmente, as teorias físicas aristotélicas tinham limitações graves (o que, evidentemente, não diminui em nada os seus grandes contributos noutros campos). Segundo Aristóteles, a queda de um objeto pesado em direção ao centro da Terra é um exemplo de movimento “natural”. É evidente que ele pensou que qualquer objeto, uma vez livre, atinge rapidamente um determinado valor, final, para a velocidade de queda, à qual se continua a mover até ao fim da trajetória. Quais os fatores determinantes da velocidade final de um objeto em queda? É fácil de ver que uma pedra cai mais depressa que uma folha. Consequentemente, raciocinou ele, o peso é o fator que rege a velocidade da queda. Esta conclusão concordava com a sua ideia de que a causa do peso era a presença do elemento Terra, cuja tendência natural era a de se dirigir para o centro da Terra. Portanto, quanto mais pesado fosse um objeto, isto é, quanto maior fosse o seu conteúdo de Terra, tanto maior seria a sua tendência para cair para o lugar natural, desenvolvendo portanto uma maior velocidade de queda.
Os mesmos objetos caem mais devagar através da água que através do ar, o que sugeriu a Aristóteles que a resistência do meio também poderia ser um fator determinante. Outros fatores, tais como a cor ou a temperatura do objeto, também poderiam, possivelmente, influenciar o movimento de queda, mas Aristóteles decidiu que a influência não poderia ser significativa. A conclusão foi que a velocidade de queda deveria crescer em proporção com o peso do objeto e decrescer em proporção com a força resistente do meio. A velocidade real de queda, em qualquer caso particular, seria obtida pelo quociente do peso pela resistência do meio.
Aristóteles discutiu também o movimento “violento”’, isto é, qualquer movimento distinto do da deslocação do objeto para o seu “lugar natural”. Tal movimento, argumentou ele, deveria ser sempre provocado por uma força, e a velocidade do movimento deveria crescer à medida que a própria força aumentasse. Quando a força fosse removida, o movimento deveria cessar. Esta teoria está de acordo com a experiência vulgar, resultante do empurrar de uma cadeia ou de uma mesa sobre o chão. Já não resulta tão bem, todavia, tratando-se do movimento de objetos no ar, uma vez que tais projéteis permanecem em movimento durante algum tempo, mesmo depois de deixar de se exercer força sobre eles. Para ter em conta este tipo de movimento, Aristóteles propôs que o próprio ar exerceria de alguma maneira uma força. Que conservaria o objeto em movimento.
Mais tarde foram propostas por cientistas algumas modificações à teoria aristotélica do movimento. Por exemplo, no século V D. C., João de Alexandria sugeriu que a velocidade de um objeto em movimento natural deveria ser obtida subtraindo a resistência do meio do peso do objeto e não dividindo este pela resistência. João de Alexandria afirmou que o trabalho experimental suportava a sua teoria. Embora não tivesse apresentado pormenores; disse apenas que deixara cair dois corpos, um dos quais era duas vezes mais pesado que o outro e que verificara que o corpo mais pesado não atingira o chão em metade do tempo do outro.
Havia ainda outras dificuldades relacionadas com a teoria aristotélica do movimento. Todavia, as limitações conhecidas na altura das suas lições, em nada diminuíram a importância que as universidades francesas e italianas lhes atribuíram durante os séculos XV e XVI. É que, apesar de tudo, a teoria aristotélica do movimento estava de acordo com a experiência vulgar, quanto mais não fosse de uma maneira geral, qualitativa. Além disso, o estudo do movimento através do espaço interessava primariamente apenas alguns, poucos, eruditos, tal como tinha constituído unicamente uma muito pequena parte do próprio trabalho de Aristóteles.
Dois outros factos entravaram o caminho às mudanças drásticas, que acabaram por se verificar na teoria do movimento. Em primeiro lugar, Aristóteles acreditava que a matemática era uma ferramenta de pequeno valor na descrição dos fenómenos terrestres. Em segundo lugar ele tinha sustentado com grande ênfase a importância das observações diretas e qualitativas como base da teorização (as observações qualitativas simples tiveram grande êxito nos estudos biológicos levados a cabo por Aristóteles). Mas, na realidade, verificou-se que o autêntico progresso na física começou apenas quando foi reconhecido o valor da previsão matemática e da medição pormenorizada e rigorosa.
Um certo número de grandes mestres dos séculos XV e XVI contribui para a mudança verificada na maneira de fazer ciência. Mas, de todos eles, Galileu foi de longe o mais eminente e bem-sucedido. Galileu mostrou como descrever matematicamente o movimento de objetos simples e vulgares – pedras em queda e esferas rolando em planos inclinados. Este trabalho não abriu apenas o caminho a outros homens para que descrevessem e explicassem os movimentos de todos os corpos, desde calhaus a planetas: iniciou também uma autêntica revolução intelectual que conduziu ao que hoje chamamos a ciência moderna.
Questão 1
Quais das afirmações seguintes poderiam ser aceites nos séculos XV e XVI por aqueles que acreditavam no sistema aristotélico de pensamento?
- As ideias sobre o movimento deverão estar de acordo com a poesia, a política, a teologia e outros aspetos do pensamento e atividade humanos.
- Os corpos pesados caem mais depressa que os leves.
- Se excetuarmos o movimento em direção ao “lugar natural”, os corpos não deverão mover-se exceto quando atuados “violentamente” por uma força.
- A matemática e a medição precisa são excecionalmente importantes no desenvolvimento de uma teoria do movimento.