Hiparco e a distância à Lua
O incrível poder da matemática como uma ferramenta para modelar o nosso mundo
Hiparco
Tal como acontece com a maioria dos cientistas do período helenístico, muito pouco se sabe sobre a vida de Hiparco (cerca de 190 a.C. – 120 a.C): apenas que ele nasceu em Niceia, na Bitínia, por volta do ano 180 a.C. e que realizou a maioria de suas observações astronómicas em Rodes, onde fundou um observatório, e em Alexandria, entre 161 e 127 a.C. (por isso, também é conhecido como Hiparco de Rodes ou de Bitínia).
Dos seus trabalhos, de acordo com numerosas fontes secundárias, só chegou até nós o Comentário sobre Fenómenos de Arato e Eudoxo. Esse comentário consta de três livros, comentando três escritos diferentes: um tratado perdido de Eudoxo onde descrevia e dava nome a várias constelações, o poema astronómico Fenómenos de Arato de Solos e que se baseava, aparentemente, em outro escrito de Eudoxo e, por último, o comentário que Átalo de Rodes escreveu, pouco antes da época de Hiparco, sobre o poema de Arato. Tendo em conta estes dados e os do Almagesto, a principal fonte de informação escrita sobre ele, a sua relevância para a história da astronomia é muito difícil de avaliar: enquanto alguns historiadores têm minimizado a importância de seu trabalho em favor de Apolónio de Perga ou Ptolomeu, outros atribuem-lhe a maior parte do Almagesto de este último autor. Nenhuma destas duas opiniões contraditórias pode ser considerada exata. O que sabemos com certeza é que, na época, Hiparco era uma autoridade, o maior astrónomo.
Uma das características das ciências do período alexandrino, a supremacia da observação, encontra a sua representação mais destacada neste autor, o que fica patente na quantidade de observações astronómicas que levou a cabo durante a sua vida, enquanto utilizou muitas das realizadas pelos seus antecessores – gregos e babilónios – e as contrastou com as próprias. Além disso, ele inventou ou aperfeiçoou diversos dispositivos que lhe permitiram ser mais exato e preciso nas suas observações e medições. Assim, por exemplo, inventou uma dioptra especial que serviu para medir as variações do diâmetro aparente do Sol e da Lua, enquanto aperfeiçoou a dioptra comum, que se utilizava para medir a altura dos astros ou as suas separações angulares.
Hiparco foi fiel aos princípios do pensamento helenístico assentes pelos pitagóricos e Platão, pelo que se viu na necessidade de conciliar dois aspetos: o respeito absoluto pelos factos e a exigência de explicá-los por movimentos circulares e uniformes. Para Hiparco, como para todos os astrónomos e matemáticos da época, fieis ao pensamento platónico, o mundo dos astros, divino e eterno, é governado por leis racionais e o único movimento racional e perfeito era o movimento circular uniforme. A tarefa do astrónomo era demonstrar que os fenómenos celestes seguiam esse movimento. Portanto, há que pôr ordem neste mundo em aparência tão caótico, aplicando procedimentos de construção geométrica tais como as excêntricas, mas sem esquecer que há que observar as peculiaridades do caminho que segue cada um dos astros da forma mais precisa possível. Só depois de uma observação precisa é possível propor um sistema geométrico que dê conta dos fenómenos do mundo, em concreto dos movimentos do Sol e da Lua.
Essa foi a tarefa a que se propôs Hiparco. Graças às muitas observações realizadas formulou duas teorias (ou modelos) que explicavam o movimento do Sol, a teoria da excêntrica e do epiciclo. Havia-se comprovado que o Sol, no seu movimento anual aparente, aparece de maior tamanho e, portanto, parece estar mais perto da Terra no inverno do que no verão. Se isso faz com que a Terra não está exatamente no centro da órbita que supostamente o Sol percorre em torno dela com um movimento circular uniforme, este mover-se-ia segundo uma trajetória excêntrica à Terra e a distância entre eles variaria ao longo do tempo.
Para a teoria do epiciclo, o Sol, S, está dotado de dois movimentos uniformes de rotação, simultâneos: um movimento circular de S de um ponto D (no espaço) de raio DS e um movimento de rotação de raio DT em torno do ponto T, que é a posição da Terra. O pequeno círculo denomina-se epiciclo e o grande deferente. Graças às suas numerosas observações, Hiparco determinou a duração das estações do ano, ou seja, dos intervalos em que o ano está dividido, pelos solstícios e equinócios. Além disso, construiu uma tabela que dava a posição do Sol em cada dia do ano, durante 600 anos.
O movimento da Lua era mais complicado, de modo que foi necessário um modelo mais complexo. Em primeiro lugar, Hiparco percebeu que era muito importante determinar o tempo que a Lua leva para alcançar a mesma posição em relação ao Sol (período denominado mês sinódico), em relação às estrelas (mês sideral) e do apogeu – isto é, o ponto em que a Lua está mais distante da Terra – e perigeu – o ponto em que a lua está mais perto da Terra – (chamado mês anómalo). Graças aos cálculos feitos pelos antigos babilónios e antigas observações de eclipses lunares, obteve estimativas muito notáveis: por exemplo, descobriu que o mês sinódico médio constava de 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 2,5 segundos, pouco menos de um segundo do valor estimado atual. No entanto, era muito complicado representar esses movimentos. Para isso, Hiparco utilizou os modelos de excêntrica móvel e de epiciclo, chegando a resultados diferentes e que não estavam completamente de acordo com as observações. Por outro lado, estudou o movimento da Lua e os três períodos diferentes (mês sinódico ou tempo decorrido entre duas luas cheias consecutivas; mês sideral, este é o tempo que leva a Lua para voltar ao mesmo ponto em relação a uma estrela fixa; e o mês anómalo, o tempo que deve decorrer para a Lua atingir a sua velocidade máxima). Isso levou-o a calcular, utilizando técnicas matemáticas e observacionais, o tamanho da Lua e a distância a que se encontra da Terra: entre 59 e 67 raios terrestres, medida mais precisa do que a oferecida por Ptolomeu, e que conhecemos pelos detalhes que este dá na sua Sintaxe Matemática a partir de um tratado perdido de Hiparco, intitulado Sobre os tamanhos e distâncias.
Quanto aos planetas, Hiparco limitou-se a afirmar que os resultados obtidos pelos seus antecessores eram insuficientes e realizou novas observações para determinar, com maior precisão, quanto tempo levavam a descrever uma órbita completa em torno da Terra. Mas, talvez porque acreditasse que os dados disponíveis não eram suficientes, não construiu qualquer sistema de excêntricas ou epiciclos que dessem conta do movimento desses astros.
Provavelmente, enquanto se encontrava a trabalhar na sua teoria do Sol e a determinar a duração do ano, Hiparco realizou a sua mais bela descoberta e, talvez, uma das mais importantes no que respeita à astronomia do período helenístico, a precessão dos equinócios, que se deve à lenta mudança de direção do eixo de rotação da Terra. Na verdade, descobriu que, no seu movimento anual, o Sol demora um pouco mais para voltar ao mesmo ponto do zodíaco (o que é considerado o ano sideral), que a voltar ao equador (celeste) de uma primavera à seguinte (ano solar). Hiparco explicou corretamente esse fenómeno, dizendo que era devido a um deslocamento anual dos pontos equinociais, ou seja, os pontos onde a eclíptica e o equador se intersetam. Estimou-o em 46” (face a 50,26” como se calcula hoje).
A descoberta da precessão dos equinócios está intimamente relacionada com um dos maiores trabalhos de Hiparco, a construção de um Catálogo das estrelas, no qual constavam mais de 800 e que, aparentemente, foram escolhidas de tal maneira que posteriormente se pudesse verificar se estavam fixas.
Não é de admirar que Hiparco seja considerado um dos maiores astrónomos da antiguidade. Tão pouco, que tiveram de passar vários séculos para alguém levar a término a tarefa que começou. Nos anos posteriores, não houve progresso significativo em astronomia e foi Ptolomeu, no século II, quem continuou a sua obra, tornando-se seu discípulo indiscutível, apesar dos séculos que os separam.
Mas Hiparco não fez só contribuições importantes à astronomia. Também fez contribuições fundamentais à matemática, em particular à trigonometria: elaborou uma tabela de cordas, um exemplo primitivo de uma tabela trigonométrica, que pretendia ser um método para resolver triângulos e introduziu na Grécia a divisão do círculo em 360 graus.
- Texto traduzido do escrito de Eulalia Pérez Sedeño (Instituto de Filosofía del CSIC, Madrid) e publicado em divulgaMAT: Hiparco de Nicea (180 a.n.e. – ?)
Sobre os tamanhos e distâncias
A maioria do que se sabe sobre os textos de Hiparco vem de duas fontes antigas: Ptolomeu e Papo de Alexandria. O seu trabalho também é mencionado por Téon de Esmirna e outros, mas as suas contribuições provaram serem menos úteis na reconstrução dos procedimentos de Hiparco.
Vários historiadores da ciência têm tentado reconstruir os cálculos envolvidos no Tratado Sobre os tamanhos e distâncias. A primeira tentativa foi feita por Friedrich Hultsch em 1900, mas foi posteriormente rejeitada por Noel Swerdlow em 1969. Gerald J. Toomer expandiu essa reconstrução em 1974.
No Tratado Sobre os tamanhos e distâncias (hoje perdido), Hiparco teria medido a órbita da Lua em relação ao tamanho da Terra. Ele tinha dois métodos de fazer isso. Um método utilizava uma observação de um eclipse solar que tinha sido total perto de Helesponto (agora chamado Dardanelos), mas apenas parcial em Alexandria. Hiparco assumiu que a diferença podia ser atribuída inteiramente à paralaxe da Lua relativa às estrelas, o que equivale a supor que o Sol, como as estrelas, estão indefinidamente longe. (Paralaxe é o deslocamento aparente de um objeto quando visto de diferentes pontos de observação). Hiparco calculou assim que a distância média da Lua à Terra é de 77 vezes o raio da Terra.
No segundo método, considerou que a distância do centro da Terra até ao Sol é 490 vezes o raio da Terra – talvez assim escolhida porque é a distância mais curta consistente com uma paralaxe demasiado pequena para deteção a olho nu. Usando os tamanhos visualmente idênticas dos discos solar e lunar, e observações da sombra da Terra durante eclipses lunares, Hiparco encontrou uma relação entre as distâncias lunar e solar que lhe permitiram calcular que a distância média da Lua à Terra é aproximadamente 63 vezes os raio da Terra. (O verdadeiro valor é cerca de 60 vezes.)
- Adaptado de Wikipedia – On Sizes and Distances e Encyclopædia Britannica – Hipparchus
Hiparco mede a distância até à Lua
- A data: 14 de março de 189 a.C. (Ou talvez 190; as fontes discordam).
- Os lugares: Alexandria e Helesponto.
- O evento: um eclipse solar.
Helesponto é um estreito (Dardanelos) na costa noroeste da Turquia. O eclipse foi total na costa de Helesponto, mas em Alexandria um quinto do Sol permaneceu visível durante o eclipse.
Ao lado está um mapa mostrando estes dois locais.
O sol subtende um ângulo de cerca de meio grau quando visto da Terra, e ao dizer que “um quinto do Sol permaneceu visível” em Alexandria, aparentemente, o que se pretendia dizer era que a parte visível do sol subtendia um ângulo de cerca de um quinto do que todo o Sol subtendia, assim, um décimo de um grau.(1)
No diagrama abaixo (assumindo que o eclipse estava no memo meridiano de Alexandria e Helesponto – o que Hiparco sabia que era falso), H é o observador em Helesponto, A é o observador em Alexandria, e M é o centro da lua (Z é a direção do zénite em Helesponto e [PQ] é o equador da terra). As duas linhas MH e MA mostram o trajeto dos raios de luz a partir da borda da sombra da lua. Uma vez que a Lua leva um mês para dar uma volta em redor da Terra, podemos assumir que permanece no mesmo lugar durante o curto eclipse solar. Da mesma forma, a revolução anual da Terra em torno do Sol (ou revolução do Sol em redor da Terra, no sistema geocêntrico) não importa. A rotação diária (da Terra ou do Sol, não importa para esta finalidade) faz a sombra da Lua mover-se ao longo do Sol de oeste para leste. Portanto, apenas a diferença de latitudes de A e H interessa; não era necessário observar o eclipse no mesmo tempo exato em ambos os lugares (por sorte, já que não havia relógios precisos). Essas latitudes são 41º para H e 31º para A (e aquelas eram conhecidas por Hiparco, pelo menos com aproximação de um grau). Uma vez que a diferença é apenas dez graus, a distância HA é aproximadamente igual a 10/360 vezes a circunferência da terra.
O ângulo agudo AMH é a “paralaxe lunar”, que o eclipse mostrou ser de 0,1 grau.(2) O diagrama a seguir mostra a geometria da situação.
No diagrama,
- \(\delta \) é a declinação da Lua. Isso é, quanto acima do plano do equador a lua apareceu naquele dia; que foi -3º, que teria significado que a lua se elevou a uma altura máxima de 3º menos do que a latitude. Então \(\delta \) é conhecido, se você conseguir ver a lua e conhecer a sua latitude.
- \(\zeta \) é a latitude de H menos \(\delta \).
- \(\zeta ‘\) é uma pequena fração de um grau diferente de \(\zeta \), visto que OM e HM são quase paralelas porque a Lua está muito longe.
Todos os ângulos no diagrama poderiam ser conhecidos antes do eclipse, com exceção do pequeno ângulo \(A\widehat MN = 0,1^\circ \), que foi medido durante o eclipse. Isso determina \(\mu \) e, portanto, a distância D, em termos do raio \(\overline {OH} = \overline {OA} \) da Terra.
O ângulo AMH a ser medido é a “paralaxe lunar” para os dois locais A e H.
Hiparco foi, talvez, o descobridor (ou inventor?) da trigonometria. Ele não inventou as funções seno e cosseno, mas em vez disso ele usou a função “corda”, dando o comprimento da corda do círculo unitário que subtende um determinado ângulo. Ele foi capaz de resolver o problema de geometria para determinar D como um múltiplo de raio da Terra, e concluiu que a lua está a 71 raios terrestres de distância da Terra. Apostando no modo de um cientista moderno, relatou as suas margens de erro: disse que a lua estava entre 35 e 41 diâmetros da Terra de distância. O valor moderno é de cerca de 60 raios, ou 30 diâmetros.
Hoje pode-se medir a distância até a lua fazendo ressaltar um feixe de laser num espelho deixado ali por astronautas, e cronometrando o tempo de ida e volta da luz. Sabemos agora a velocidade da luz com muita precisão, pelo que obter a distância requer apenas uma multiplicação.
Alguns anos mais tarde, Hiparco fez outra tentativa para medir a distância até à Lua, usando um eclipse lunar, e obteve uma resposta maior; e as suas margens de erro dos dois cálculos nem sequer se sobrepõem, o que admitiu honestamente. A medida de que o eclipse estava a 4/5 de completo foi provavelmente não muito precisa, cálculos modernos mostram isso. Na realidade, nós não sabemos com certeza os detalhes exatos dos cálculos de Hiparco, embora vários historiadores tenham publicado reconstruções; apenas um fragmento de suas obras sobreviveu.
Em princípio, a precisão de tais medições podem ser melhoradas através da utilização de uma linha de base mais longa. Isso não parece ter sido feito até 1751, quando o astrónomo francês Nicolas Louis de Lacaille, no Cabo da Boa Esperança, mediu a paralaxe lunar, comparando as suas observações com as observações feitas por outros astrónomos na Europa, e calculou que a paralaxe lunar que seria observada a partir de lados opostos da Terra (uma linha de base de 8000 milhas) seria de cerca de dois graus.
- Texto traduzido do escrito de Michael Beeson – HIPPARCHUS MEASURES THE DISTANCE TO THE MOON
(1) (2)
Vejamos o enquadramento para a explicação dada por G. J. TOOMER (de um escrito sobre Hiparco, pág. 213 e 215):
Sizes, Distances, and Parallax of the Sun and Moon.
These last data are connected with another topic on which Hipparchus wrote. In order to predict the circumstances of a solar eclipse, one must know the relative sizes and distances of the bodies concerned: sun, moon, and earth (for lunar eclipses it suffices to know the apparent sizes; but in solar eclipses parallax, which depends on the distances of the moon and sun, is very important).
Hipparchus devoted a treatise “On Sizes and Distances”, in two books, to the topic. By combining the remarks of Ptolemy and Pappus, we can infer that Hipparchus proceeded as follows. By measurement with the diopter he had established the following data:
(1) The moon at mean distance measures its own circle 650 times.
(2) The moon at mean distance measures the earth’s shadow (at the moon) 2+1/2 times.
(3) The moon at mean distance is the same apparent size as the sun.
He also had established by observation that the sun has no perceptible parallax. But from this he could deduce only that the sun’s parallax was less than a certain amount, which he set at seven minutes of arc.
In book I, Hipparchus assumed that the solar parallax was the least possible – that is, zero. He then derived the lunar distance from two observations of a solar eclipse (which can be identified as the total eclipse of 14 March 190 B.c.), in which the sun’s disk was totally obscured near the Hellespont and four-fifths obscured at Alexandria . The assumption that the sun has zero parallax means that we can take the whole shift in the obscured amount of the sun’s disk (a fifth of its diameter) as due to lunar parallax.
… … …
In any case, his investigation of the distances furnished Hipparchus with a horizontal parallax that, for the moon, was approximately correct. For computation of the circumstances of solar eclipses, and to correct observations of the moon with respect to fixed stars, he had to find the lunar parallax for a given lunar longitude and terrestrial latitude and time. This is a very unpleasant problem in spherical astronomy. We know that Hipparchus solved it; but we know very little about his solution, although it is certain that it was not carried out with full mathematical rigor. We can infer from a criticism made by Ptolemy that Hipparchus wrote a work on parallax in at least two books. The details of Ptolemy’s criticism are quite obscure to me; and the only safe inference is that in converting the total parallax into its longitudinal and latitudinal components, Hipparchus treated spherical triangles as plane triangles (some of these triangles are too large for the procedure to be justifiable, but one can apply the same criticism to Ptolemy). The actual corrections for parallax that Hipparchus is known to have applied to particular lunar observations are, however, reasonably accurate. One might guess that the methods of computing parallax found in Indian astronomical texts (which are quite different from Ptolemy’s) are related to Hipparchus’ procedures, but at present this is mere speculation.
Nota:
De acordo com os dados (1) e (3) acima, a paralaxe lunar seria \(\mu = \frac{1}{5} \times \frac{{360 \times 60′}}{{650}} \approx 6,65′ \approx 0,11^\circ \).
Métodos Matemáticos
Na astronomia grega, as posições dos corpos celestes foram calculadas a partir de modelos geométricos aos quais tinham sido atribuídos parâmetros numéricos. Um elemento essencial do cálculo foi a solução de triângulos planos; a trigonometria Grega foi baseada numa tabela de cordas. Sabe-se que Hiparco escreveu uma obra sobre cordas e nós podemos reconstruir a sua tabela de cordas. A tabela estava baseada num círculo em que a circunferência foi dividida, na forma normal (Babilónia), em 360 graus de 60 minutos, e o raio foi medido nas mesmas unidades (minutos); assim, R, o raio, expresso em minutos, é \[R = \frac{{360 \times 60′}}{{2\pi }} \approx 3438’\]
Esta função corda está relacionada com a função seno moderna (para \(\alpha \) em graus) por \[\frac{{{\mathop{\rm Crd}\nolimits} 2\alpha }}{2} = 3438 \times {\mathop{\rm sen}\nolimits} \alpha \]
Hiparco calculou a função apenas em intervalos de 1/48 de um círculo (7,5º), utilizando a interpolação linear entre os pontos calculados para outros valores. Assim, ele foi capaz de construir a tabela inteira numa base geométrica muito simples: pode ser calculado a partir dos valores de \({\mathop{\rm Crd}\nolimits} 60^\circ \left( { = R} \right)\), \({\mathop{\rm Crd}\nolimits} 90^\circ \left( { = \sqrt {2R} } \right)\) e as duas fórmulas seguintes (nos quais \(d\) é o diâmetro do círculo de base e \(s\) é corda do ângulo \(\alpha \)):
\[{\mathop{\rm Crd}\nolimits} \left( {180^\circ – \alpha } \right) = \sqrt {{d^2} – {s^2}} \]
\[{\mathop{\rm Crd}\nolimits} \frac{1}{2}\alpha = \sqrt {\frac{1}{2}\left( {{d^2} – d\sqrt {{d^2} – {s^2}} } \right)} \]
A primeira é uma aplicação trivial do teorema de Pitágoras e a segunda já era conhecida por Arquimedes.
Esta tabela de cordas sobrevive apenas na tabela seno comumente encontrada em obras astronómicas Indianas, com \(R = 3438’\) e os valores calculados em intervalos de \(3,75^\circ \), que é derivada dela. Mas o seu uso por Hiparco pode ser demonstrado a partir de cálculos seus preservados no Almagesto IV, 11. Por outro lado, para além de um par de ocorrências isoladas do seu uso, ela desaparece da astronomia grega, sendo substituída pela melhorada tabela de cordas de Ptolomeu baseada no círculo unitário (\(R = 60 = 1,0\) no sistema sexagesimal de Ptolomeu) e calculada com três casas sexagesimais em intervalos de \(0,5^\circ \). Os resultados dos cálculos trigonométricos com base na tabela de cordas de Hiparco, embora menos precisos do que os baseados na tabela de Ptolomeu, são adequados no contexto da astronomia antiga. A principal desvantagem da sua utilização, em contraste com a de Ptolomeu, é a constante intrusão do fator 3438 nos cálculos. Tem a vantagem compensatória, no entanto, de, para ângulos pequenos (até \(7,5^\circ \)), a corda poder ser substituída pelo ângulo expresso em minutos (a este respeito, é análogo à moderna medida em radianos), o que simplifica os cálculos.
Dada a função corda, Hiparco podia resolver qualquer triângulo plano usando o equivalente da fórmula dos senos moderna:\[\frac{{{\mathop{\rm Crd}\nolimits} 2\alpha }}{a} = \frac{{{\mathop{\rm Crd}\nolimits} 2\beta }}{b}\]
Sem dúvida, como Ptolomeu, ele geralmente calculava com triângulos retângulos, quebrando outros triângulos em dois triângulos retângulos. Na ausência de uma função tangente, teve que usar a função corda combinada com o teorema de Pitágoras; mas os seus métodos, se mais pesados, eram tão eficazes como aqueles da trigonometria moderna. Problemas trigonométricos particulares tinham sido resolvidos antes de Hiparco por Aristarco de Samos (início do terceiro século a.C.) e por Arquimedes, usando métodos de aproximação; mas parece altamente provável que Hiparco foi o primeiro a construir uma tabela de cordas e, assim, a proporcionar uma solução geral para problemas trigonométricos.
Um corolário disto é que, antes de Hiparco, não existiam tabelas astronómicas com base em métodos geométricos gregos. Se isto é assim, Hiparco não foi apenas o fundador da trigonometria, mas também o homem que transformou a astronomia grega de uma ciência puramente teórica numa prática ciência preditiva.
- Extraído de um escrito (sobre Hiparco) (Michael L. Gorodetsky) de G. J. TOOMER, pág. 208-209
Função corda
A função corda é definida geometricamente como ilustrado na figura ao lado.
A corda de um ângulo é o comprimento da corda correspondente a esse ângulo.
A função corda pode ser relacionada com a função seno moderna, considerando os pontos \(A\left( {1,0} \right)\) e \(B\left( {\cos \alpha ,{\mathop{\rm sen}\nolimits} \alpha } \right)\) e, seguidamente, aplicando o Teorema de Pitágoras:
\[{\mathop{\rm crd}\nolimits} \alpha = \sqrt {{{\left( {1 – \cos \alpha } \right)}^2} + {{{\mathop{\rm sen}\nolimits} }^2}\alpha } = 2{\mathop{\rm sen}\nolimits} \left( {\frac{\alpha }{2}} \right)\]
Assim, o comprimento da corda [AB] pode ser expressa por:
\[s = \overline {AB} = r \times {\mathop{\rm crd}\nolimits} \alpha = r \times \sqrt {{{\left( {1 – \cos \alpha } \right)}^2} + {{{\mathop{\rm sen}\nolimits} }^2}\alpha } = 2r \times {\mathop{\rm sen}\nolimits} \left( {\frac{\alpha }{2}} \right)\]
Tarefa 1
Deduza a expressão \({\mathop{\rm crd}\nolimits} \alpha = 2{\mathop{\rm sen}\nolimits} \left( {\frac{\alpha }{2}} \right)\), tendo em consideração que \(\cos \left( {2\theta } \right) = {\cos ^2}\theta – {{\mathop{\rm sen}\nolimits} ^2}\theta \).
Lei dos senos
Dado um triângulo [ABC] qualquer, sabe-se que as mediatrizes dos seus lados intersetam-se num ponto O, denominado por circuncentro, que é equidistante dos vértices A, B e C, ou seja, \(\overline {OA} = \overline {OB} = \overline {OC} \). É, portanto, possível construir uma circunferência, com centro nesse ponto, que passa pelos três vértices do triângulo. O raio dessa circunferência designa-se por circunraio (\(r\)).
A lei dos senos diz-nos que existe uma proporcionalidade direta entre o comprimento de cada lado do triângulo e o seno da amplitude do ângulo oposto, sendo que a constante de proporcionalidade direta é o dobro do circunraio:
\[\frac{{\overline {AB} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat C}} = \frac{{\overline {BC} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat A}} = \frac{{\overline {AC} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat B}} = 2r\]
Quando a constante de proporcionalidade direta (\(2r\)) não é usada, a lei é, por vezes, estabelecida utilizando as razões recíprocas:
\[\frac{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat A}}{{\overline {BC} }} = \frac{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat B}}{{\overline {AC} }} = \frac{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat C}}{{\overline {AB} }}\]
A lei de senos pode ser usada para calcular os restantes lados de um triângulo quando dois ângulos e um lado são conhecidos, segundo uma técnica conhecida como triangulação. No entanto, o cálculo pode resultar com erro numérico se a amplitude de um ângulo é próximo de 90 graus. Também pode ser usada quando dois lados e um dos ângulos não encapsulados são conhecidos. Em alguns destes casos, a fórmula dá dois valores possíveis para o ângulo fechado, conduzindo a um caso ambíguo (porque há mais do que uma solução para o triângulo considerado).
Demonstração
Há várias possibilidades para demonstrar a lei dos senos. Vamos apresentar uma das mais simples.
Consideremos um triângulo [ABC], qualquer (acutângulo, retângulo ou obtusângulo), inscrito numa circunferência de centro O. A partir do ponto A, podemos determinar um ponto diametralmente oposto, o ponto A’, e considerar o triângulo retângulo [AA’B].
Da propriedade do ângulo inscrito, podemos concluir que \(\widehat {A’} = \widehat C\), pois esses ângulos determinam na circunferência o mesmo arco AB.
Assim, vem:
\[{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat C = {\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat {A’} = \frac{{\overline {AB} }}{{2r}}\]
donde
\[\frac{{\overline {AB} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat C}} = 2r\]
Repetindo o processo para os pontos B’ e C’, diametralmente opostos de B e C, respetivamente, obtém-se:
\[\frac{{\overline {BC} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat A}} = 2r\]
e
\[\frac{{\overline {AC} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat B}} = 2r\]
Logo, podemos concluir que:
\[\frac{{\overline {AB} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat C}} = \frac{{\overline {BC} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat A}} = \frac{{\overline {AC} }}{{{\mathop{\rm sen}\nolimits} \widehat B}} = 2r\]
Tarefa 2
Termine a demonstração.
Tarefa 3
Tendo em consideração os dados avançados na descrição acima, bem como as ferramentas matemática modernas correspondentes às de Hiparco (a relação da função corda com a função seno e a lei dos senos), determine o valor de D em função do raio da terra e verifique se está de acordo com a suposta conclusão de Hiparco: “a lua está a 71 raios terrestres de distância da Terra”.
Tenha em consideração as seguintes aproximações:
- \(\zeta ‘ \approx \zeta \)
- \(D = D’ + r\)
Para evitar a sua procura, apresentam-se de novo os dados conhecidos:
- Latitude de Helesponto: \({\phi _H} = 41^\circ \)
- Latitude de Alexandria: \({\phi _A} = 31^\circ \)
- Declinação da Lua: \(\delta = – 3^\circ \)
- Paralaxe lunar: \(\mu = 0,1^\circ \)
Tarefa 4
Tente configurar a animação seguinte com a solução adiantada por Hiparco.
Nota final
Sobre o cálculo, G. J. TOOMER refere:
From AH, Θ, and μ (\(\mu = \frac{1}{5} \times \frac{{360 \times 60′}}{{650}}\)) the triangle AHM is determined (in terms of r); and we find \(AM = D’ \approx 70r\), and \(D = D’ + r \approx 71r\).
This is the distance of the moon at the time of the eclipse. To find the least distance of the moon, we have to reduce it by one or two earth radii. Hipparchus found 71r as the least distance. The small discrepancy is no doubt due to the approximations (in \({\phi _H}\), \({\phi _A}\), and \(\zeta ‘\)) made above. By applying the ratio R : e = 3122+1/2 : 247+1/2, derived from his lunar model, Hipparchus found the greatest distance as 83r. The assumption that the eclipse took place in the meridian (which Hipparchus knew to be false) implies, however, that the distances must be greater than those computed (for as the moon moves away from the meridian, the angle \({\phi _H}\), and hence D’, increases), so that 71r represents the minimum possible distance of the moon.
Fontes:
- Texto de Eulalia Pérez Sedeño (Instituto de Filosofía del CSIC, Madrid) e publicado em divulgaMAT: Hiparco de Nicea (180 a.n.e. – ?)
- Texto de Michael Beeson – HIPPARCHUS MEASURES THE DISTANCE TO THE MOON
- Escrito (sobre Hiparco) (Michael L. Gorodetsky) de G. J. TOOMER
- School of Mathematics and Statistics, University of St Andrews, Scotland: Hipparchus of Rhodes
- Encyclopædia Britannica – Hipparchus
- Wikipedia – Hipparchus
- Wikipedia – On Sizes and Distances
- Hellenic World encyclopaedia – Hipparchus
- Starry Messenger – Hipparchus